quinta-feira, 4 de junho de 2009

Açougue xXXx

Tentou abrir os olhos. Inútil. O cheiro ocre de carne apodrecendo infestava seu olfato aguçado.
As pálpebras estavam pesadas demais. Seus pés não encostavam no chão. Sentia frio, muito frio.
O barulho de um exaustor infernizava seus ouvidos, não se lembrava onde estava, que dia era. O que raios havia acontecido? Onde estava e quem o levou até lá?

Sua pele estava rígida e sentia uma dor no braço direito como se o houvesse partido em algum momento. Não se lembrava do próprio nome, só pensava no frio e em sair dali. Qualquer lugar era melhor do que ali. Precisava de calor e tinha que ser rápido.


Os olhos finalmente se abriram, preguiçosos. Uma pequena luz distante iluminava o ambiente. Suas costas haviam sido penetradas por um gancho e suspendiam o seu corpo do solo numa cena macabra.
Muitos outros homens, ainda desacordados, jaziam pendurados em ganchos como o rapaz. Completamente nus, as cabeças pendendo tristemente como se fossem cientes de sua condição, não expressavam emoção alguma.

Alguns tinham cabelos compridos, outros tinham rostos angelicais. Os ferimentos variavam de hematomas horríveis no rosto até fraturas imensas nos joelhos, exceto por um único ferimento em comum: Uma ferida do lado esquerdo do peito como uma recém operação. Pontos costurados em todos eles fechando o corte pelo qual algo parecia ter sido retirado. Tentou se recolher aos seus pensamentos quando fazia como criança e escutar, sentir o sangue fluir pelo seu corpo. Mas não conseguiu, não conseguiu ouvir seu próprio coração. Eles o haviam roubado, calado-o para sempre.

Depois de algum tempo um ruído de serralheria fez-se ouvir e uma voz feminina recitava frases sentenciosas como "O problema não é você, sou eu" ou "não vou atendê-lo agora, deixarei ele pensar mais um pouco em mim" e dizia também "Já deu o que tinha que dar eu não quero me relacionar agora, tenho medo, estou confusa, prefiro não me envolver, não dará certo entre nós dois.".
Uma grande esteira, logo depois destes ultimatos, começava a funcionar levando o pobre infeliz, vítima destas palavras cruéis, até um moedor de carne. Acima dele próximo ao gancho, flutuava um coração. Logo, era depositado o coração numa bandeja e este era dilacerado até nada mais que uma poça de sangue.

Risadas? As vezes.
Remorso? Nunca.
Só aqueles perenes olhos indiferentes numa mulher fria mesmo que conhecida.
Não, não conhecia aquela mulher, não mais.
Volta e meia uma pequena pontada de ressentimento passava pelo cenho.
Raramente um sorriso malicioso, ódio.

Atrelada a um mastro por sobre um pedestal iluminado, uma representação ferida e sangrando da mesma mulher. Chorando a altos brados, sobrepunha o barulho do exaustor e enchia o recinto com a dor que só uma prisão eterna pode proporcionar.
Era o bloqueio dos antigos açougues pelo qual passara. A resultante fora aquela criatura vil que agora criava o seu próprio abatedouro, destruindo os poucos pontos de luz que ainda insistem em brilhar nas trevas.

O rapaz havia entendido. Estava dentro da cabeça de um comum. Calmamente relaxou os músculos. Sabia o que iria acontecer. Sabia também que não era a primeira vez, mesmo que não se lembrasse, que estava num local assim.
Renasceria das cinzas.
A poça de sangue se reverteria no antigo coração.
Não deixaria de acreditar.

Foi pensando nisso que levemente sorriu e deixou o corpo balançar no gancho.

Esperaria sua vez.



No dia que o último dos inocentes deixar de acreditar, a humanidade encontrará seu fim.
Carmani

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