domingo, 7 de abril de 2013

Invisibilidade

    Jazia a madrugada em Brasília. O rapaz caminhava lentamente, o cigarro entre os dedos, sentindo a brisa frígida da noite balançar levemente os curtos cabelos castanhos. Os papéis de bala e anúncios de auto escola ao sabor do vento eram o prenúncio de que nada de bom poderia acontecer. Um aviso de que deveria ir pra casa, se remexer dentro de suas cobertas e buscar sonhos onde devemos buscá-los; no sono.
    
    Este não era, entretanto o dia em que faria isto. Ele seguia um tênue rastro de perfume adocicado que, quase imperceptível, enebriava seus pensamentos e o conduzia ao desconhecido. Como um caçador de passos leves, como o tigre à espreita da presa, ele caminhou por entre as vielas e postes em busca do seu destino. A calça jeans rasgada dificultava os movimentos. A camiseta preta, também bastante surrada, seria quase uma camuflagem se não fosse pela alva pele que se mostrava naquele rosto cheio de olheiras, todavia quase juvenil.

    Se havia alguma lembrança de há quantas noites não dormia, esta já estava perdida há muito. Se alimentava de fumaça e esperança. Era uma noite de lua nova, sem estrelas, sem calor, ríspida e indiferente. Foi quando perante um sobrado comercial, sentiu um estalo. Uma porta de metal, quadriculada em vidro, cuja pintura branca descascada não dava nenhuma impressão de boas vindas, foi o zênite de sua empreitada. Por um momento quase pensou em bater à porta, tocar o interfone e descobrir o que lhe esperava. Poderia ser desde um ponto de venda de drogas, até uma simples empresa, cujo escritório principal se encontrava vazio agora e as escuras. Poderia ser a porta do paraíso, talvez. A sua salvação ou a sua perdição. Precisava descobrir e sabia como.

    Sorriu. Não era um rapaz qualquer. Não era aquele, parado defronte aquela pequena fortaleza, alguém que precisasse de qualquer forma destas ninharias. Inspirou profundamente e fechou os olhos enquanto caminhava para a porta. Os pés flutuaram levemente por sobre os sujos degraus de pedra enquanto levitava calmamente com as mãos trêmulas. Newton se viraria na cova se visse uma cena como essa. O corpo se fundindo ao concreto na parte de cima, deixando a porta para trás, efêmero, subindo como um balão de gás. As moléculas valsando juntas no mesmo lugar, ao mesmo tempo. A impossibilidade física criada ali no lugar mais improvável, ordinário, no sentido mais literal da palavra e simultaneamente tão abstrato. Era uma residência.

    Incólume como estava do lado de fora, se viu numa sala adornada, na qual um enfeite quebrado chamou sua atenção. Era um vaso vermelho sangue. Poderia ser um vaso Ming ou qualquer adorno que se poderia comprar na torre de televisão, bastava saber o valor que tinha para o seu dono. Refletiu ali por um momento vendo os cacos que se espalhavam pelo azulejo branco. Por que ninguém havia recolhido aqueles cacos? Seria uma lembrança ou uma miragem feita pela sua cabeça? Sua mente lhe pregando uma peça, com certeza. Poderia jurar que o reflexo da luz nos cacos era como o que o sol faz na água. Se tivesse uma reflexão própria, provavelmente a encontraria ali. Mas não tinha. Caminhou por entre os cômodos esperando algo acontecer. Foi aí que a viu.

    Como uma criança despreocupada, ali estava a dona do rastro que seguiu até agora. Deitada de bruços na cama, as pernas balançando despreocupadamente no ar, os cabelos negros repousando nas costas. Como o vaso ele também se quebrou. Sentiu uma vontade enorme de gritar enquanto as lágrimas quentes surgiam no rosto e ele se despedaçava. A vontade de ser comum, ser possível, ser real para aquela moça tranquila que mexia no telefone e sorria volta e meia. Ela não fazia ideia de que ele estava ali. Um animalzinho olhava diretamente para aquilo que alguns segundos atrás era o rapaz intangível. Um monte de cacos amontoados no chão frio. Pouco a pouco, se reconstruía, se recuperava do golpe, se tornavam um novamente, seus pedaços. Um latido. Quantas vezes aquilo havia acontecido, não sabia dizer. Mas uma coisa era certa: Nenhuma das de outrora foi tão intensa, tão certeira, tão mortal quanto aquela pontada, aquele martelo que o destruiu naquele quarto. Se recompôs, finalmente.

    Assim seria sempre. Ele sabia. O homem invisível, o observador errante. Seria sempre como o vaso que se quebrava. A luz que se extinguia no poste quando nenhum carro estava passando.Ajoelhou ao lado dela e observou. Era tudo que poderia fazer. Mesmo assim, quase podia descrever com palavras o toque cálido daquelas mãos. A felicidade leve que poderiam causar com um simples abraço. Secou suas lágrimas. Era tão simples aquele momento e ao mesmo tempo tão incompreensível. Impossível de descrever o tamanho da vontade de vê-la feliz. O ímpeto dentro do peito de carregá-la nos braços, dizer que tudo ficaria bem. Esquecer de todos os outros seres reais do mundo e fazer a vida de fato valer a pena. Era mesmo uma pena. Era mesmo um sonho. Como que por um milagre, ela de repente se virou. Olhou dentro dos olhos dele e ele se sentiu um tolo por pensar por uma fração de segundo que ela poderia estar enxergando-o. Tolo. Ela fechou a janela aberta com um puxão. Ele se levantou, cabisbaixo. Abriu os braços e se deixou flutuar para trás. Não era nem poderia ser real. Alcançando a rua se misturou ao vento, jogou um beijo para ela, lhe causando um sorriso de canto de boca involuntário. E sumiu. Para sempre. Amando e desejando com a força de um trem, mas ainda assim, leve como a brisa frígida da qual agora fazia parte, quebrado como o vaso que encontrou na sala.

O começo pode ser a resposta de tudo.

Carmani